🔗 A falácia das prioridades
A conclusão a que eu quero chegar nesse texto é um tanto óbvia, mas é impressionante o quanto ainda vemos argumentos do tipo “com tanto X a ser feito, como é que se gasta tempo/dinheiro em Y”. Esses tempos mesmo, vi um desses: a @rosana (cuja bela palestra eu tive o prazer de assistir no TEDxPortoAlegre 2010) tuitou que tinha vergonha do padrão de plugs e tomadas do Brasil. Expliquei que o novo padrão de plugs do Brasil é a proposta da ISO para um padrão mundial, e o Brasil foi o primeiro país a adotar. Ela respondeu: “Taí um pioneirismo que dispenso, num pais com 30 milhões de analfabetos funcionais. Tem outras prioridades”.
Eu poderia simplesmente perguntar “o que tem a ver a educação com as tomadas?”, mas deixei pra lá, pois a resposta certamente seria que o custo total de mudar o padrão de tomadas seria melhor investido em educação. Um argumento que à primeira vista parece sensato, especialmente quando não paramos para avaliar o custo total de coisas que queimam por falta de aterramento, o impacto de saúde dos choques elétricos causados pela falta do relevo na tomada adotado em muitos países, o fato de que as tomadas são compatíveis com 80% dos aparelhos elétricos no Brasil, o fato de que no Brasil imperava uma salada entre padrões europeu e americano, etc. Ou seja, quando desqualificamos algo, tratando como pouco importante (ou mesmo inútil) o contra-argumento de que “o governo deveria gastar este dinheiro em escolas/hospitais” sempre vem à tona.
Pensei nisto ontem enquanto estava na sala de espera do Hospital Israelita Albert Sabin, onde há um cartaz explicando o sistema de prioridades que eles utilizam. Cada paciente na espera da emergência ganha uma pulseirinha de papel colorido, indicando um nível de prioridade: vermelho para o mais prioritário, depois laranja, amarelo, verde ou azul. Fiquei pensando então em como funcionaria o critério deles para determinar quem é atendido primeiro.
A primeira reação “sem pensar” é a que primeiro se atendem as pulseiras vermelhas, depois as laranjas e assim por diante. Certamente, porém, o sistema não pode funcionar assim, pois se houver dois pacientes vermelhos, e cada vez que um for chamado chegar mais um paciente vermelho, os pacientes das outras cores nunca serão atendidos e ficarão se acumulando na sala de espera. Nesse caso, tem que haver um momento em que há um paciente vermelho na sala de espera e ele é deixado esperando e um paciente laranja é chamado no lugar. O mesmo vale em relação a laranja versus amarelo e todas as demais cores. Então, mesmo que hajam pacientes com pulseiras de todas as cores na sala de espera, uma hora o paciente com pulseira azul tem que ser chamado.
Esse problema é chamado de escalonamento e é muito estudado em computação. É dessa mesma forma que o sistema operacional decide como distribuir os dois ou quatro cores do seu processador para os dez programas (e as vinte abas do Firefox) que você tem abertos, além de tudo mais que o sistema precisa fazer para manter o computador funcionando e que você não vê. Eles formam uma fila distribuída por prioridades. Existem critérios para atender as filas de modo que as tarefas mais prioritárias esperem menos para executar. As tarefas menos prioritárias vão esperar mais, mas é preciso garantir que elas não fiquem empacadas esperando para sempre, o que em computação se dá o apriopriado nome de “starvation” (”inanição” em inglês, referindo-se que a tarefa “morre de fome” esperando e nunca ganha a sua vez). Usar bons esquemas de escalonamento é fundamental para que o sistema passe a impressão de que tudo está “rodando macio” sem travar. Os múltiplos cores do processador ficam alternando no atendimento aos programas, mas todos aparentam fluir de forma contínua. Não há uma solução simples para o problema; por isso, é tema de constante pesquisa.
Hoje estava andando pela rua e olhei para uma árvore plantada na calçada. Pensei no gasto do Estado para botar e manter aquela árvore ali. Olhei para a trilha de árvores na rua, uma após a outra. Uma árvore sozinha certamente ganharia uma pulseirinha azul, mas a arborização da cidade como um todo é muito mais importante: ninguém quer viver em uma cidade com escolas e hospitais mas sem nenhuma árvore. Assim como no escalonamento em um computador, é preciso compreender que o conjunto das coisas menos importantes tem também a sua importância.
O erro no “contra-argumento das prioridades” ocorre quando ao dizer “com tanto X a ser feito, como é que se gasta tempo/dinheiro em Y”, dá-se a entender que X e Y são mutuamente exclusivos. É claro que ao se tratar de recurso limitado com tempo ou dinheiro, toda alocação exclui outra, mas na realidade não significa que ao fazer X não se pode fazer Y também. A solução, claro, é dar pesos às coisas: fazer um pouco de X e muito de Y, caso se considere que Y é tão mais importante que X. É a falácia da “falsa bifurcação”: dizer que uma situação é “ou um ou outro” quando na verdade não é. Escolas e hospitais, pela sua justa importância, sempre têm grande apelo em um argumento. Mas isto não torna necessariamente certo destruir praças para construir hospitais.
Acho válido que as pessoas tenham opiniões negativas sobre o padrão de tomadas, a alocação dos recursos públicos ou o que quer que seja. Mas por favor, discutam os méritos ou deméritos das coisas em si, e evitem usar dos chavões “com esse dinheiro dava pra fazer X escolas”, ou “com tanta gente precisando de hospital”. Educação e saúde são, sim, prioridades, mas não vamos nos esquecer que as coisas “menos prioritárias” (meio-ambiente? arte? cultura? esporte?), em conjunto, também têm a sua importância e contribuem para um povo mais saudável e educado. Como eu disse no início, essa conclusão é um tanto óbvia, mas ainda assim se vê muito esse erro por aí.
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