hisham hm

🔗 A degradação da web em tempos de IA não é acidental

Essa semana essa imagem, aparentemente originada do Reddit, circulou pelo Mastodon:

Continuei dando scroll e vendo outras pessoas postando outros exemplos, demonstrando que o scraping de IA do Google pega trechos de posts compartilhados em redes sociais e os afirma como fatos nos resultados de busca, mesmo quando eram satíricos.

Basicamente, hoje em dia, dizer “eu vi no Google” e nada, é a mesma coisa. Em termos práticos, é basicamente impossível convencer o público em geral a parar de usar o Google, migrar para outras opções como o DuckDuckGo (e lembrá-los de desabilitar os anti-recursos de IA do DuckDuckGo!). O único conselho prático que se pode dar que eu tenho alguma esperança que as pessoas possam seguir é: se a busca no Google deu uma resposta direta nessas caixinhas, ignore e siga algum link pra um site editado por humanos, como a Wikipedia.

Comentando sobre isso com a minha família, comentaram como as respostas de IA são ruins comparadas com a do ChatGPT, pois às vezes o Google sequer acerta o assunto. De certa forma, o ChatGPT acertar o assunto é até pior, pois não é mais correto, apenas mais convincente.

O que temos que lembrar é que o que chamam de “IA” hoje são modelos de linguagem, não modelos de informação. O ChatGPT “fala melhor”, mas mente tanto quanto.

Isso nos leva à questão: por que investir bilhões em sistemas computacionais que efetivamente mentem? Lembrando que não há razões técnicas pra acreditar que eles vão deixar de mentir. O discurso de “ah, mas eles ficarão melhores com o tempo” é um discurso de marketing, não da ciência. Os grandes players já consumiram toda a informação disponível na internet, e estão reclamando que está faltando dados novos para treinamento, e a Amazon reclamou recentemente que ao tentar varrer a internet para obter dados para um sistema de tradução automática, a qualidade do material era muito baixa… porque grande parte do texto disponível na web hoje são textos de baixa qualidade gerados via IA.

A razão, portanto, não é técnica. Ela é econômica, e, com isso, inseparavelmente política—uma vez que a política é fonte de poder econômico e vice-versa.

Em suma, estamos vivendo uma era surreal: os poderosos estão fazendo uma guerra contra a realidade.

A realidade, especialmente aquela que alcança a todos, mete medo. Vimos uma primeira onda disso em 2011, em tempos de primavera árabe e Occupy Wall Street. Foi, como chamou Zizek, o ano em que sonhamos perigosamente. E dali continuou. As demonstrações de organização popular online que aconteceram em 2020, dos negros no Black Lives Matter, das mulheres no #MeToo a partir de 2017, dos trabalhadores da informática falando em sindicalização na pandemia, botaram medo nas estruturas de poder.

A onda de layoffs na indústria de informática em 2022, um movimento feito em concerto por grandes empresas e também pelas menores controladas por firmas de venture capital, todas demitindo entre 5% e 15% dos funcionários (e abrindo vagas logo em seguida), foi um espasmo contra a reação dos trabalhadores. Na mesma época, bilionários da informática começaram a se manifestar de forma mais explícita politicamente—reagindo, em direção oposta, a um movimento similar iniciado pelos próprios trabalhadores da área.

Os concentradores do poder no mundo da informática estão trabalhando pra desmantelar a estrutura descentralizada da internet. Eles têm feito isso há anos através do poder centralizador do Google, mas o Google antes agregava links, era como um tronco de uma árvore que ia pra múltiplos lugares. Agora o Google responde ele mesmo, distorcendo as respostas.

É o mesmo padrão em todas as empresas de IA. A OpenAI varre a internet sugando a escrita dos outros, mas ao invés de gerar um índice de links como o Google fazia, coleta tudo dentro de um modelo que regurgita informação e desinformação conforme critérios de filtragem que ninguém além deles mesmo têm acesso.

O objetivo é calar o povo, calar a internet. Antes, através dos links, a internet falava, enquanto voz das pessoas. Agora quem fala são as poucas mega-empresas através dos seus porta-vozes artificiais.

A Meta anunciou agora que nas suas redes sociais eles vão começar a promover ativamente influencers artificiais. São movimentos para gradualmente ocupar todos os espaços da internet onde antes se via a voz das pessoas.

Quando falei dessa notícia da Meta com minha família, a reação foi de espanto. Mas essas notícias só chocam quando são novidade. Depois as pessoas baixam a cabeça e aceitam. Quando o Google começou a botar mentiras no topo das páginas de resultados todo mundo achou chocante. Hoje todo mundo baixa a cabeça, dá de ombros e usa mesmo assim, dizendo “é a vida”. Hoje mesmo vi um screenshot do Google dizendo que 1,378 polegadas é o mesmo que 1¼ polegadas (só para relembrar, 1¼ é 1,25).

Esses tempos vi um YouTuber dizendo que calculou as medidas de um móvel no ChatGPT e depois teve que jogar fora as tábuas porque foram cortadas errado. Imagine quantas vezes por dia, com milhões de pessoas usando o ChatGPT para buscar informação, coisas desse tipo não acontecem. Imagine quais coisas mais sérias do que um móvel estragado podem estar sendo vítimas de desinformação.

A IA, tal como essas empresas promovem, não é “só mais uma ferramenta, que como todas pode ser usada para o bem ou para o mal”, contra-argumento que sempre ouvimos. Os algoritmos de machine learning que viabilizam esses produtos são sim as ferramentas neutras. Eles têm inúmeras aplicações excelentes e benéficas para a humanidade. Já esses produtos — ChatGPT, Google Gemini, Grok, etc. — são projetados, com bilhões de dólares por trás, com objetivos bem específicos e donos que têm projetos políticos cada vez mais explícitos.

Assim, dá pra entender a raiva do Elon Musk contra a Wikipedia, que é um dos últimos sites grandes da internet que preza por tentar coletar informação real e não lixo de IA. Musk tem uma visão de mundo clara: uma visão controlada pelo poder econômico (dele próprio, claro), com desprezo pela democracia e por outros povos, e sustentado por ligações corruptas entre o estado e o interesse privado, ao mesmo tempo que brada sobre a grandeza do país. Deixo aos leitores o exercício de dar um nome a essa ideologia. A sua tática de chamar tudo o que é contra a visão de mundo dele de “woke” funciona com muita gente, apelando à insegurança das pessoas quanto a um mundo em constante mudança.

Mas isso é uma cortina de fumaça. O que incomoda é o fato de que, no meio de uma tela cheia de informações falsas e links patrocinados como na imagem acima, ainda existe frequentemente perto do topo o link para a Wikipedia, um site é que produzido por um coletivo de seres humanos, dedicados a coletar e redistribuir seu conhecimento, de forma aberta e gratuita. Que são dedicados a revisar e corrigir seus erros, e buscar algo que sirva como uma representação da realidade à nossa volta. Não era esse afinal o o ideal das ciências, tanto exatas como humanas?

É sobre a disseminação da informação chegar a todos, e não sobre um mundo controlado por alguém que acha que pra atender a seus interesses econômicos pode nos derrubar a hora que quiser.


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