🔗 Como acessar o site do Smiles no Linux com Firefox
Há bastante tempo o site do programa de milhagens Smiles, da Gol, está bugado no Firefox. Em vez de resolver o problema, eles resolveram detectar o browser dos usuários e tentar impedi-los de acessar o site se eles não estiverem usando Internet Explorer. Para nós que usamos Linux, isto não é uma opção. Felizmente, o Firefox é tão flexível que consegue até contornar a incompetência dos programadores do site do Smiles. Aqui vai a receita de como fazer:
Ingredientes
- Firefox 4
- add-on User Agent Switcher
- add-on Nuke Anything Enhanced
Modo de preparo
- No Firefox, siga os links acima e instale os add-ons
- Reinicie o Firefox
- Entre no site do Smiles
- clique na bandeirinha do Brasil se ele entrar em inglês… pra mim ele sempre insiste em inglês, mesmo o meu IP sendo do Brasil!
- No menu do Firefox, Vá em Tools → Default User Agent e selecione alguma versão do Internet Explorer, como “Internet Explorer 8”
- Clique em “Entrar”. Veja como ele é enganado pelo add-on e agora nos permite acessar a tela de login
- Note que não conseguimos clicar em nada da página. Esse é o bug do site do Smiles. Para resolver, vá no menu do botão direito (você pode clicar em qualquer lugar da janela) e selecione a opção “Remove this object”… quatro vezes
- Sim, você precisa remover quatro camadas invisíveis que nos impedem de clicar na interface. Note que depois de fazer isso, a página funciona normalmente!
- Entre seu número Smiles e a senha normalmente, e clique em OK
- Você está logado! Mas note que o problema das quatro camadas invisíveis existe em todas as páginas!
- Clique em “Emissão de bilhete on-line”. O bloqueador de pop-ups vai avisar que impediu um pop-up. Clique em “Preferences…” e libere os pop-ups de “smiles.com.br”.
- Paciência, você está quase lá. Faça a dança dos quatro “Remove this object” e clique em “Emissão de bilhete on-line” de novo. Agora o pop-up abre.
- Ta-da!!! O pop-up é baseado no sistema de passagens normal da Gol, que funciona no Firefox! Você está livre do site bugado do Smiles. A partir daqui é como comprar passagens normalmente no site da Gol.
🔗 How you look, how you sound, what you say: Alexandre Garcia e o preconceito linguístico
Circulou hoje na internet o vídeo de um comentário de Alexandre Garcia criticando o uso no ensino de um livro que trata da noção de preconceito linguístico. Foi um dos links mais divulgados no Twitter ao longo do dia.
Ao tentar entender o porquê de tamanha comoção na internet a favor do vídeo, lembrei de uma frase do hilário Eddie Izzard que minha namorada gosta de repetir: “o que conta pra maioria das pessoas é 70% a sua aparência, 20% como você soa, e 10% o que você diz” (no original: “it’s 70% how you look, 20% how you sound, 10% what you say”).
Toda vez que vídeos como esse circulam eu tenho a sensação de que as pessoas se identificam com o tom do discurso: todo mundo tem uma indignação com o “estado atual das coisas” (mesmo que isso seja um conceito um tanto vago) e gostaria de um Brasil melhor.
Quando aparece alguém que soa que está fazendo um discurso indignado em prol de um Brasil melhor, sempre ganha de cara bastante simpatia. Quando a sua aparência é respeitável — afinal, é um comentarista na Rede Globo! — imediatamente ganha algum crédito.
Resta o que ele diz. Dado que o que ele diz trata de um debate sobre variações linguísticas que ele apenas vagamente distorceu e de que a maioria das pessoas não está ciente, os outros dois fatores dominam e o vídeo é um hit certo.
A argumentação de Garcia apresenta vários pontos aparentemente válidos, mas distorce totalmente a questão da política pública em relação a variações linguísticas em vigor desde o governo FHC e mantida pelo PT (portanto não é uma questão partidária). É natural que quem não está a par do assunto se assuste com a ideia de “um livro que defenda falar errado”.
Porém, o que se defende não é isso. O que se defende é reconhecer que é fato que não se fala como se escreve, e que diferentes grupos falam de maneiras diferentes, em sotaque e em gramática. E sim, tanto na fala como na escrita o “aceitável” varia conforme a situação. Aqui no blog escrevo de forma mais relaxada do que se estivesse escrevendo um texto acadêmico. Dando uma palestra, falo de forma mais monitorada do que falando com os amigos.
O ponto central é que nenhuma dessas falas corresponde à escrita. Todo mundo fala de um jeito e escreve de outro. Até o Alexandre Garcia, que no próprio vídeo diz “e é óbvio que a raiz de tudo TÁ na capacidade de se comunicar” (aos 0:51). Por esse motivo, não procede o argumento dele que diz “Renata, quando eu TAVA no primeiro ano do grupo escolar e a gente falava errado a professora nos corrigia porque ela estava nos preparando pra vencer na vida”… bom, sr. Garcia, segundo essa lógica de que só a norma culta é certa, você continua “falando errado”, mas pelo visto conseguiu vencer na vida mesmo assim, não?
O que pessoas como ele querem é esconder o fato de que alguns erros são aceitos em um determinado contexto e classe social (até um comentarista da Rede Globo pode dizer “tá” e “tava”) e outros não são (dizer “as mina” é coisa de gente “sem educação”). Isso, resumindo em uma frase, é o preconceito linguístico. [Na prática, isso varia conforme o lugar também: no Rio Grande do Sul as classes média e alta “comem” os plurais ao falar muito mais do que no Rio de Janeiro, por exemplo, onde isso tem uma percepção mais forte de fala de classe baixa.]
O que o MEC defende é que não há lógica em relevar que o aluno de classe média fale “a gente tava” e oprimir o aluno de classe baixa que fale “as mina” — o que se deve é ensinar a ambos que se escreve “a gente estava” (ou “nós estávamos”) e “as meninas”, e que conforme o lugar onde eles estiverem é mais aceitável falar de um jeito ou de outro.
Alexandre Garcia fala em “educação rígida, tradicional e competitiva”. Pode até soar bonito em um discurso indignado que se coloca contra uma suposta “chancela para a ignorância”. Mas nós queremos “educação rígida” em vez de ensinar adaptabilidade num mundo tão dinâmico como o de hoje, “educação tradicional” em vez de inovadora, e “educação competitiva” em vez de colaborativa? Eu não quero.
Ainda assim, é triste ver que o “how you look, how you sound, what you say” se aplica a essa história em outro nível: se a sua aparência não for respeitável (como a do comentarista da Globo) e a sua retórica não for eloquente (como a dele), os seus desvios da norma culta não vão “passar batido” como os do Alexandre Garcia, e ainda vai ter gente na TV discursando para que o seu modo de falar seja combatido.
Para saber mais sobre a polêmica em torno do livro “Por uma vida melhor” e as variações linguísticas, recomendo este texto.
🔗 A falácia das prioridades
A conclusão a que eu quero chegar nesse texto é um tanto óbvia, mas é impressionante o quanto ainda vemos argumentos do tipo “com tanto X a ser feito, como é que se gasta tempo/dinheiro em Y”. Esses tempos mesmo, vi um desses: a @rosana (cuja bela palestra eu tive o prazer de assistir no TEDxPortoAlegre 2010) tuitou que tinha vergonha do padrão de plugs e tomadas do Brasil. Expliquei que o novo padrão de plugs do Brasil é a proposta da ISO para um padrão mundial, e o Brasil foi o primeiro país a adotar. Ela respondeu: “Taí um pioneirismo que dispenso, num pais com 30 milhões de analfabetos funcionais. Tem outras prioridades”.
Eu poderia simplesmente perguntar “o que tem a ver a educação com as tomadas?”, mas deixei pra lá, pois a resposta certamente seria que o custo total de mudar o padrão de tomadas seria melhor investido em educação. Um argumento que à primeira vista parece sensato, especialmente quando não paramos para avaliar o custo total de coisas que queimam por falta de aterramento, o impacto de saúde dos choques elétricos causados pela falta do relevo na tomada adotado em muitos países, o fato de que as tomadas são compatíveis com 80% dos aparelhos elétricos no Brasil, o fato de que no Brasil imperava uma salada entre padrões europeu e americano, etc. Ou seja, quando desqualificamos algo, tratando como pouco importante (ou mesmo inútil) o contra-argumento de que “o governo deveria gastar este dinheiro em escolas/hospitais” sempre vem à tona.
Pensei nisto ontem enquanto estava na sala de espera do Hospital Israelita Albert Sabin, onde há um cartaz explicando o sistema de prioridades que eles utilizam. Cada paciente na espera da emergência ganha uma pulseirinha de papel colorido, indicando um nível de prioridade: vermelho para o mais prioritário, depois laranja, amarelo, verde ou azul. Fiquei pensando então em como funcionaria o critério deles para determinar quem é atendido primeiro.
A primeira reação “sem pensar” é a que primeiro se atendem as pulseiras vermelhas, depois as laranjas e assim por diante. Certamente, porém, o sistema não pode funcionar assim, pois se houver dois pacientes vermelhos, e cada vez que um for chamado chegar mais um paciente vermelho, os pacientes das outras cores nunca serão atendidos e ficarão se acumulando na sala de espera. Nesse caso, tem que haver um momento em que há um paciente vermelho na sala de espera e ele é deixado esperando e um paciente laranja é chamado no lugar. O mesmo vale em relação a laranja versus amarelo e todas as demais cores. Então, mesmo que hajam pacientes com pulseiras de todas as cores na sala de espera, uma hora o paciente com pulseira azul tem que ser chamado.
Esse problema é chamado de escalonamento e é muito estudado em computação. É dessa mesma forma que o sistema operacional decide como distribuir os dois ou quatro cores do seu processador para os dez programas (e as vinte abas do Firefox) que você tem abertos, além de tudo mais que o sistema precisa fazer para manter o computador funcionando e que você não vê. Eles formam uma fila distribuída por prioridades. Existem critérios para atender as filas de modo que as tarefas mais prioritárias esperem menos para executar. As tarefas menos prioritárias vão esperar mais, mas é preciso garantir que elas não fiquem empacadas esperando para sempre, o que em computação se dá o apriopriado nome de “starvation” (”inanição” em inglês, referindo-se que a tarefa “morre de fome” esperando e nunca ganha a sua vez). Usar bons esquemas de escalonamento é fundamental para que o sistema passe a impressão de que tudo está “rodando macio” sem travar. Os múltiplos cores do processador ficam alternando no atendimento aos programas, mas todos aparentam fluir de forma contínua. Não há uma solução simples para o problema; por isso, é tema de constante pesquisa.
Hoje estava andando pela rua e olhei para uma árvore plantada na calçada. Pensei no gasto do Estado para botar e manter aquela árvore ali. Olhei para a trilha de árvores na rua, uma após a outra. Uma árvore sozinha certamente ganharia uma pulseirinha azul, mas a arborização da cidade como um todo é muito mais importante: ninguém quer viver em uma cidade com escolas e hospitais mas sem nenhuma árvore. Assim como no escalonamento em um computador, é preciso compreender que o conjunto das coisas menos importantes tem também a sua importância.
O erro no “contra-argumento das prioridades” ocorre quando ao dizer “com tanto X a ser feito, como é que se gasta tempo/dinheiro em Y”, dá-se a entender que X e Y são mutuamente exclusivos. É claro que ao se tratar de recurso limitado com tempo ou dinheiro, toda alocação exclui outra, mas na realidade não significa que ao fazer X não se pode fazer Y também. A solução, claro, é dar pesos às coisas: fazer um pouco de X e muito de Y, caso se considere que Y é tão mais importante que X. É a falácia da “falsa bifurcação”: dizer que uma situação é “ou um ou outro” quando na verdade não é. Escolas e hospitais, pela sua justa importância, sempre têm grande apelo em um argumento. Mas isto não torna necessariamente certo destruir praças para construir hospitais.
Acho válido que as pessoas tenham opiniões negativas sobre o padrão de tomadas, a alocação dos recursos públicos ou o que quer que seja. Mas por favor, discutam os méritos ou deméritos das coisas em si, e evitem usar dos chavões “com esse dinheiro dava pra fazer X escolas”, ou “com tanta gente precisando de hospital”. Educação e saúde são, sim, prioridades, mas não vamos nos esquecer que as coisas “menos prioritárias” (meio-ambiente? arte? cultura? esporte?), em conjunto, também têm a sua importância e contribuem para um povo mais saudável e educado. Como eu disse no início, essa conclusão é um tanto óbvia, mas ainda assim se vê muito esse erro por aí.
🔗 Pensamento sobre as mídias sociais e os grandes acontecimentos
Vendo a repercussão no Twitter sobre a morte do Bin Laden, reitero a mesma percepção que tive no massacre de Realengo. Muito se elogia as redes sociais como nova mídia, trazendo uma nova relação com as notícias, mas o que eu vejo é que esses meios diluem toda e qualquer profundidade dos acontecimentos, tratando toda e qualquer coisa que acontece da mesma forma. O mesmo tipo de reações impulsivas, a mesma falta de reflexão nos argumentos, a mesma mentalidade de rebanho, o mesmo tipo de piadinhas. Não importa o que aconteça.
🔗 Os suíços e suas armas, parte 2: contrapontos
Recebi hoje de várias pessoas o link para o artigo “Os suiços [sic] e suas armas“, uma tradução de um texto da NRA, organização americana pró-armas, considerado o grupo de lobby mais influente dos EUA.
O assunto é interessante e relevante, mas duas coisas me incomodam a respeito do texto.
Uma, menos importante, é que certamente muita gente que lê tira dele apenas um argumento para conversa de churrasco de fim de semana do tipo “ó, mas na Suíça todo mundo tem arma e funciona!” (vide a seção de comentários).
A segunda, mais importante, é a fraqueza dos argumentos. Embora a experiência da Suíça seja sim algo a ser estudado e compreendido ao se falar da relação de uma sociedade com armas, e embora o texto faça ressalvas no início e no final de que tratam-se de sociedades diferentes e isso deve ser levado em conta, os argumentos centrais são distorções construídas de modo a pintar um quadro de que botar arma na casa de todo mundo “resolve”. Vejamos:
Num país onde o povo é armado não pode haver outra forma de governo que não seja democrático.
Mentira. Os dados desmentem: o Yemen tem propriedade de armas per capita maior que a Suíça e é uma ditadura, assim como a Arábia Saudita, que também figura no Top 10.
Uma velha anedota suíça reza que o príncipe alemão Wilhelm Hohenzollern certa vez, quando em visita a Suíça, foi convidado a assistir um dos inúmeros treinamentos militares a que os cidadãos desse país são submetidos. A um dado momento perguntou ao comandante do exercício: Quantos homens em armas você possue? Foi-lhe respondido: Um milhão. O príncipe, posteriormente Kaiser da Alemanha, então indagou:
O que você faria se cinco milhões de meus soldados cruzassem sua fronteira amanhã? Ao que o comandante suíço replicou: Cada um de meus homens daria cinco tiros e iria para casa!
Uma bela anedota pró-armas, mas mesmo que isso fosse verdade no tempo do Reino da Prússia, todos nós sabemos que hoje em dia isso é balela. Desde os avanços tecnológicos da Primeira Guerra Mundial, uma guerra não se vence pelo número de homens. E essa é uma falha central do texto: dizer que a população da Suíça ter um rifle em casa é o que defende o país. Estamos na era de armas nucleares e aeronaves não-tripuladas. Dizer em negrito e itálico que “o suíço não tem um exército: eles são o exército” pode ser muito bonito e patriótico, mas não faz disso verdade. O que protege a Suíça são os seus acordos internacionais.
Como sempre os anti-armas estão errados, mas isso não torna o grupo favorável necessariamente certo.
Não me classifico como “anti-armas”, mas acho uma frase dessas um absurdo para um texto argumentativo.
Completamente mobilizado, o exército suíço apresenta 15,2 homens por quilometro quadrado; em contraste, os EUA e a Rússia tem apenas 0,2 soldados por Km2.
A comparação é ridícula, já que não leva em conta a dimensão e densidade demográfica dos países.
Realmente, somente Israel tem mais exército por Km2.
…e veja como as coisas são pacíficas por lá. Como podemos ver, isso não prova nada para nenhum dos lados do argumento.
Em 1977, o movimento INICIATIVA MUNCHENSTEIN propôs permitir aos cidadãos a escolha do trabalho social, ou em hospitais, como alternativa ao serviço militar. A proposição foi rejeitada nas urnas e nas 2 casas do parlamento (o “Bundesversammlung’s Nationalrat” e o “Standerat”).
O que o texto não diz é que em 1992 essa proposição foi aprovada. Com 83% dos votos, os suíços votaram pela introdução de um artigo adicional à constituição, permitindo serviço civil alternativo. A lei entrou em vigor em 1996, e agora os suíços podem optar por prestar serviço civil em ONGs, trabalhando com agricultura, hospitais, centros para a juventude, proteção ambiental, pesquisa em universidades, reflorestamento, etc. Os tempos mudaram e as necessidades da sociedade também.
Os ultrajados usuários de armas suíças formaram, então, um grupo chamado Pro Tell, em homenagem do herói nacional Guilherme Tell.
Agora ele é um “herói nacional”, enquanto o próprio texto anteriormente estabelece que trata-se de uma lenda. Como muito dos argumentos do texto que tenta justificar políticas “atuais” (que, como acabamos de ver, não correspondem à realidade atual) com anedotas históricas, o grupo Pro Tell sustenta o seu nome na imagem mítica do herói armado.
A maioria dos suíços ainda vive em famílias patriarcais tradicionais. De fato, a Suíça tem a mais baixa porcentagem de mães trabalhando em relação a qualquer país europeu. Enquanto no resto do mundo as mulheres estavam lutando por igualdade de direitos, os suíços ainda estavam decidindo se as mulheres poderiam ou não votar (a longa demora na aprovação do sufrágio feminino, deve ter algo a ver com a questão dos direitos civis e o serviço militar).
As escolas são severas e os adolescentes têm menos liberdade do que na maior parte da Europa. Os estudos mostram que os adolescentes suíços, diferentemente daqueles nos outros países, sentem-se mais próximos de seus pais do que de seus amigos. A comunicação entre as gerações é muito fácil.
Entre os fatores que contribuem para a harmonia entre gerações está o serviço militar, que oferece uma oportunidade para todos os grupos masculinos interagirem entre si.
Eu conseguiria imaginar alguém da National Rifle Association escrevendo isso para o público conservador americano, mas será que algum dos meus amigos que mandou esse link acredita nessas coisas, e acha que são pontos positivos famílias patriarcais, menos direitos às mulheres, escolas severas e menos liberdade para os jovens? Bom, uma coisa que posso dizer é que outro lugar em que todas essas coisas são igualmente comuns é no mundo árabe, e portanto não acho que essas coisas geram sociedades saudáveis e democráticas.
Esse “exemplo histórico de democracia” está longe de ser um modelo ideal. As mulheres só obtiveram direito de voto em 1971, e apenas em 1985 ganharam direitos iguais no Código Civil, com uma votação de 60% a 40%.
Tudo isso, juntamente com várias outras atividades levadas a cabo na Suíça envolvendo diversas faixas etárias, têm servido para inibir a separação de gerações, alienação, e o crescimento de uma cultura jovem à parte, que tem se tornado, de maneira crescente, uma característica de muitos outros países desenvolvidos.
O texto diverge rapidamente a uma apologia ao conservadorismo.
Será que se o exército começasse a vender canhões e metralhadoras a preços subsidiados ao povo haveria um declínio da criminalidade em nosso país? Certamente não, nos primeiros trinta anos.
Como assim “nos primeiros trinta anos”? A ressalva é risível, como se distribuir canhões e metralhadores levaria a uma estabilidade de longo prazo. O próprio texto coloca que a cultura militarista na Suíça se sustenta em uma construção social de séculos e omite outros fatores importantes que viabilizam a posição de neutralidade do país. Fatores esses que, ao meu ver, são hoje os essenciais.
A Suíça manteve-se em paz no período das guerras mundiais por ser o “banco do mundo”. O franco suíço era a única moeda livremente convertível em escala mundial. Assim como tácitos acordos mantinham os QGs das forças aéreas dos Aliados e do Eixo intactos enquanto os demais prédios (e a população civil) de Berlim e Londres eram bombardeados, o valor estratégico para ambos os lados de manter instituições financeiras sólidas imunes à guerra era bem conhecido e nada tinha a ver com os rifles que a população civil guardava em casa.
Hoje, na realidade de uma Europa em processo de gradual unificação, a Suíça mantém-se como o “loophole” da União Europeia. Enquanto os países da Europa sujeitam a sua população a um conjunto cada vez maior de leis comuns, o sistema financeiro europeu tem na Suíça um ponto de apoio imune às regulamentações da União. Os acordos da UE comumente incluem ou excluem a Suíça seguindo uma lógica que mantém o status “especial” das instituições financeiras suíças enquanto gradualmente sujeitam a sua população ao mesmo conjunto de regras do resto do continente.
Cada cidadão que entra para o exército suíço recebe um exemplar do Soldatenbusch. Lá estão os rudimentos das táticas e técnicas militares, instruções sobre como se proteger das guerras nuclear, química e bacteriológica, assim como técnicas de ocultamento e construção de abrigos.
Mas o Soldatenbusch não é apenas um manual militar. Trata-se de algo mais profundo que podemos definir como um “Manual do Cidadão”. Lá, ao lado de uma sinopse da história do país, o soldado encontrará capítulos mostrando a importância da democracia, a importância da participação do soldado nos plebiscitos comunais, e a importância de sua arma na defesa desses valores.
Folheando o Soldatenbusch percebe-se que os princípios democráticos estão firmemente arraigados na população.
Serviço militar obrigatório, toda a população sujeita a um livro que é o “manual” que ensina quais devem ser os seus valores (como o Livro Vermelho de Mao Tse Tung?), resultando em uma sociedade militarista, conservadora, e com histórico reportado de racismo (e não apenas em relação àquelas com pele mais escura) e intolerância? Não, obrigado.
A discussão sobre a legislação em relação às armas na nossa sociedade é extremamente válida, mas por favor não venham usar textos como esse ou argumentos como “na Suíça todo mundo tem arma e lá é bom!”. Todos os aspectos de uma sociedade influenciam uns aos outros e produzem os resultados que aparecem nas estatísticas, tanto os positivos como os negativos. Não vamos simplificar o discurso e nem mascarar a discussão com anedotas históricas, ilusões patrióticas, conservadorismo velado e frases bonitas.
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